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segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

QUANDO UM POEMA PODE SER A ÚLTIMA SALVAÇÃO



Hoje ouvi nossa canção.
Aquela que brindava à vida
Que aludia a sonhos
Fazendo inchar o coração

Hoje vi o nosso canto.
Aquele lá da praça
De onde vi
Me perder em seus encantos

Hoje senti o cheiro.
Quase em desespero
Fugindo em devaneio

Hoje chorei copiosamente.
Pela saudade do que nunca tive
Meu amor foi embora e não detive

E com lágrimas nos olhos viu sua vida passar por aquele poema como um filme passa pulando na nossa frente. Uma mistura de tudo quanto é amargura visitou seu coração fazendo o fel palatar os agouros e a saudade apunhalar suas lembranças.
A pergunta que não calava seus ouvidos: por que não lutou por ela?
Virando a página daquela folha, molhada pelas lágrimas que não lhe cabiam nos olhos, notou um endereço propositalmente indicado com uma seta.
- Desde nosso último encontro quando fiquei sabendo da gravidez e do risco que corria por ela ter um pai austero e ignorante, achei mesmo que o melhor seria eles mudarem. Não havia me negado a casar e “assumir“ ( que termo mais piegas) meu filho. Nosso amor era lindo e forte. Acho que era tudo que queríamos, apesar de termos feito tudo errado.
- Agora é isso! Eu aqui, do alto no meu apartamento, com o que sobrou do nosso amor e você... sabe lá onde estará.
- Ah, se eu tivesse uma chance?!
Enquanto pensava olhando o infinito a folha fora tirada de sua mão de forma furtiva por uma rajada de vento, fazendo flutuar rumo à avenida movimentada.
- Aí, caramba! E agora? Se descer correndo não vejo onde caiu. Se ficar, posso perder a única coisa que parece me levar ao encontro dela. E a agonia tomou seu coração.
- Vai folhinha. Não me abandone agora. Caia num lugar onde eu posse te ver daqui.
- Ai!..aí não!.. se cair no meio da avenida nunca mais...uhh!!....shiii..ai...ai..pronto!
- Aquilo parece um ônibus, mas vou marcar o número que está no teto para não perdê-lo e descer.
Com velocidade do triatleta que não era, desceu pelas escadas pisando três degraus de cada vez, já que o elevador estava descendo e demoraria para voltar. Ao chegar na portaria, pulou a roleta e se jogou na rua. No mundo de pedra no qual parecia que todos usavam apenas ônibus. Somente naquele instante foi que percebeu que a numeração do teto só daria para ver do apartamento, mas lembrou tratar-se da cor azul, olhando para os dois lados saiu correndo no meio da rua em comprovada e insana loucura.
Corria ao sons de buzinas e freadas bruscas acompanhadas de palavrões aos quais nem dava bola. Chegou a hora de lutar por aquilo que acreditava. Sabia que não seria fácil controlar a ira do pai da moça, mas pior seria sofrer essa despedida descabida e covarde imposta como única alternativa. O futuro dependia daquele pedaço de papel e do maldito ônibus que desaparecera.
- Mas como pode um ônibus desaparecer neste trânsito?
- 100974. Era o número do ônibus. Conforme ultrapassava um a um olhava suas numerações ao lado da janela do motorista.
- 865430...765544...saco! Cadê você, meu amor?? Me ajude!?
- Ali! 100950. Isso é pior que acertar as cinco das seis dezenas da mega sena, pensou.
Esticando o pescoço e olhando ao longe viu o ônibus 100974 virando a esquina e saiu correndo já ofegante e sem fôlego. Foi quando se deu conta de que o sinal abriu para a pista contrária e um fluxo absurdo de veículos fez surgir um mar de carros multicoloridos sobre seus olhos. Algo intransponível... será?
Por um momento viu ela chorando enquanto acenava sua despedida.
- É agora ou nunca.
 Abrindo os braços foi sinalizando de forma a ser visto pelos condutores passando as raspelões e esbarrões de retrovisores uma a uma das seis pistas até o outro lado percebendo que as pessoas paradas ali no farol faziam platéia para a cena divididos entre os atônitos com as mãos na cabeça, os infartantes com a mão no peito e os estressados que xingavam ao mesmo tempo que abanavam as mãos em sinal de discórdia.
Cruzou pela calçada e pode ver o ônibus a cerca de um quarteirão de distância. Um longo quarteirão para ser bem sincero.
- E se o papel voou do ônibus? Não! Acho que não e o ônibus parecia orvalhado. E não posso estar tão azarado assim. Vai dar certo! Vou conseguir aquele papel e vou ainda hoje à sua procura.
Quando chegou próximo do ônibus e verificando o número como sendo o 100974 seu olhar, foi conduzido sorrateiramente ao para-brisa de um carro que vinha no sentido contrário conseguindo reconhecer apenas o amarelo envelhecido do papel do poema, seu companheiro triste dos últimos três dias. E uma segunda rajada de vento derrubou folhas secas do teto daquele ônibus sobre sua cabeça fazendo entender que estavam num cruzamento repleto de prédios que canalizavam o ar em rajadas de vento capazes de alegrar uma donzela.
- Um táxi? Não é possível! E agora?
E uma motocicleta freou bruscamente em sua frente a ponto de quase atropelá-lo.
- Aí? Você é louco? Vai para calçada, maluco?!
Mas o trajar do motoqueiro aliado ao capacete sentado no banco do passageiro era tudo que precisava naquele momento... um mototaxista, afinal.
- Não sou louco, sou passageiro. Siga aquele táxi, disse subindo rapidamente na moto e colocando o capacete.
Tentava não tirar o táxi de foco tendo que vez por outra apontar o novo rumo para o motoqueiro. Sentindo que ia perder o carro dos seus sonhos de vista, sacou da carteira uma nota de cinquenta reais e abanou-a na frente do motoqueiro apontando para o táxi e para o relógio do outro braço. Como diria o poeta: “para um bom entendedor um pingo é uma frase”.
A motocicleta deu um galope retornando uma marcha que arrepiou as esperanças no incauto Romeu. O trânsito estava rápido e o céu ameaçava uma chuva.
- Se cair um pingo ele liga o limpador e lá se vai meu poema, pensava o alcaide.
Aos poucos a moto foi conseguindo vencer o trânsito e quase no final daquela avenida, já perto de uma rotatória conseguia vislumbrar o carro que emparelhava com um caminhão de lixo bastando passar por entre ambos que alcançaria o poema.
Mas a tarefa que já se demonstrara pra lá de difícil, tomou outro rumo quando a primeira gota tocou o para-brisa do táxi fazendo o limpador jogar ao vento o amado poema que, sob um olhar deslumbrado do dono, passou a bailar de um para-brisa direto para traseira do caminhão de lixo se dando ao luxo de ficar com uma das pontas de fora como quem acena fazendo birra.
- Não acredito nisso!
Imediatamente, sinalizou para o motoqueiro no sentido de aproximar-se do caminhão. Todos em velocidade moderada, porém andando, davam à cena um risco inadequado mas impensado pelo apaixonado ragazzo que, achado-se desesperado demais para continuar simplesmente se joga da moto com as mãos esticadas na tentativa de pegar a alça utilizada pelos catadores...e com sucesso apesar dos raspões do sapato pelo asfalto, do breve escorregão e da salva batida de cabeça que o capacete habilmente evitou, devolvendo- o ao motoqueiro que riu sumindo em seguida.
Com a fúria de um Titã e completamente incapaz de qualquer outra peripécia agarrou o papel com a força necessária para alçar uma sacaria de sessenta quilos com apenas dois dedos.
- Venha aqui.
Só então percebeu que o caminhão estava parando, possivelmente achando tratar-se de um assalto. Na verdade olhando bem os olhos do motorista que assistia pelo retrovisor, certo seria um sequestro.
Sem tempo para discussões, fez sinal de desculpas com a palma da mão aberta e foi descendo antes da parada total. Não tinha tempo para discussões ou explicações.
Assim que o caminhão acelerou pôde perceber que estava num bairro residencial. Virou o papel ali mesmo na calçada e leu atentamente o endereço.
- “Rua cem, 974, Suíça”.
- Não acredito que corri tanto por nada. Ela foi embora para a Suíça. Agora sim é o fim. Jamais poderei revê-la novamente. Acabou...fim!
Suíça no Brasil. Tem gente que é besta mesmo. Porque colocar o nome de um bairro de Suíça?
Ah, sei lá. Acho chique. Quem não pode mudar para a Suíça, muda para cá que dá na mesma.
A ridícula conversa só não foi mais torpe porque anunciava que a Suíça poderia ser aquele bairro e não o país.
- Moço, o senhor sabe onde fica a rua cem? Perguntou o intrépido apaixonado.
- Acho que duas acima dessa na paralela. Respondeu o retardado.
- Claro que não. É três contando com essa. Retrucou o sonso.
E o esperançoso rapaz sorrateiramente caminhou até o endereço deixando as criaturas bestiais apreciando suas melancólicas existências.
- O que digo a ela?
- Será que o pai dela vai brigar comigo? Não dou a mínima. Nem vou reagir. Se achar melhor me bater, desde que me aceite, que assim seja. Não posso surrar o sogro, coitado.
- 972...974. É aqui!
- E agora? Bato na porta, grito, jogo uma pedrinha. Pedra não porque com a sorte que estou hoje é bem provável que quebre a janela e piore as coisas.
Tirou o poema do bolso e deu uma ultima olhada. Quando levantou os olhos decidido a tocar a campainha ela estava à sua frente. Linda...maravilhosamente linda. O vento que tanto jogou seu poema de uma lado para outro agora voava seus cabelos como que rindo da nossa pequenez ou, quem sabe, assentindo que a tarefa estava completa.
- Eu tinha certeza que viria, disse ela.
- Nem que fosse agarrado num caminhão de lixo!
- Como assim? Estranhou.
- Deixa para lá! Disse ele.
E abraçando sua amada olhou de lado, novamente para o infinito ... e piscou com um sorriso.
Ah!? Sobre o que aconteceu depois? Bom! Ele não apanhou do sogro porque, à essa altura, a sogra e a moça haviam dobrado a turrice do velho que passou a aceitá-lo parcialmente como era esperado.
Melhor assim!

Um comentário:

  1. Luciano, ao ler o seu conto, eu chorei muito, ri bastante e me desesperei com a procura de nossa jovem. Como eu torci para ele encontrá-la!
    O desenrolar do texto, a forma como você conduziu foi simplesmente fantástico. Muitos poderão ler sem notar o papel que o "vento" tem nesta narrativa, mas aqueles que conseguirem sentir com certeza ficaram inebriados com a beleza das palavras, assim como estou agora. Parabéns, sem dúvida você é um grande escritor.

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