Hoje ouvi
nossa canção.
Aquela que
brindava à vida
Que aludia
a sonhos
Fazendo
inchar o coração
Hoje vi o
nosso canto.
Aquele lá
da praça
De onde vi
Me perder
em seus encantos
Hoje senti
o cheiro.
Quase em
desespero
Fugindo em
devaneio
Hoje
chorei copiosamente.
Pela
saudade do que nunca tive
Meu amor
foi embora e não detive
E
com lágrimas nos olhos
viu sua vida passar por aquele poema como
um filme passa pulando na nossa frente. Uma mistura de tudo quanto é amargura
visitou seu coração fazendo o fel palatar os agouros e a saudade apunhalar suas
lembranças.
A
pergunta que não calava seus ouvidos: por que não lutou por ela?
Virando a página
daquela folha, molhada pelas lágrimas que não lhe cabiam nos olhos, notou um
endereço propositalmente indicado com uma seta.
- Desde nosso último encontro
quando fiquei sabendo da gravidez e do risco que corria por ela ter um pai
austero e ignorante, achei mesmo que o melhor seria eles mudarem. Não havia me
negado a casar e “assumir“ ( que termo mais piegas) meu filho. Nosso amor era
lindo e forte. Acho que era tudo que queríamos, apesar de termos feito tudo
errado.
- Agora é isso! Eu aqui, do alto no
meu apartamento, com o que sobrou do nosso amor e você... sabe lá onde estará.
- Ah, se eu tivesse uma chance?!
Enquanto
pensava olhando o infinito a folha fora tirada de sua mão de forma furtiva por
uma rajada de vento, fazendo flutuar rumo à avenida movimentada.
- Aí, caramba! E agora? Se descer
correndo não vejo onde caiu. Se ficar, posso perder a única coisa que parece me
levar ao encontro dela. E a agonia tomou
seu coração.
- Vai folhinha. Não me abandone
agora. Caia num lugar onde eu posse te ver daqui.
- Ai!..aí não!.. se cair no meio da
avenida nunca mais...uhh!!....shiii..ai...ai..pronto!
- Aquilo parece um ônibus, mas vou
marcar o número que está no teto para não perdê-lo e descer.
Com
velocidade do triatleta que não era, desceu pelas escadas pisando três degraus
de cada vez, já que o elevador estava descendo e demoraria para voltar. Ao
chegar na portaria, pulou a roleta e se jogou na rua. No mundo de pedra no qual
parecia que todos usavam apenas ônibus. Somente naquele instante foi que
percebeu que a numeração do teto só daria para ver do apartamento, mas lembrou
tratar-se da cor azul, olhando para os dois lados saiu correndo no meio da rua
em comprovada e insana loucura.
Corria
ao sons de buzinas e freadas bruscas acompanhadas de palavrões aos quais nem
dava bola. Chegou a hora de lutar por aquilo que acreditava. Sabia que não
seria fácil controlar a ira do pai da moça, mas pior seria sofrer essa
despedida descabida e covarde imposta como única alternativa. O futuro dependia
daquele pedaço de papel e do maldito ônibus que desaparecera.
- Mas como pode um ônibus
desaparecer neste trânsito?
- 100974. Era o número do ônibus. Conforme ultrapassava um a um olhava suas
numerações ao lado da janela do motorista.
- 865430...765544...saco! Cadê você,
meu amor?? Me ajude!?
- Ali! 100950. Isso é pior que
acertar as cinco das seis dezenas da mega sena, pensou.
Esticando
o pescoço e olhando ao longe viu o ônibus 100974 virando a esquina e saiu
correndo já ofegante e sem fôlego. Foi quando se deu conta de que o sinal abriu
para a pista contrária e um fluxo absurdo de veículos fez surgir um mar de
carros multicoloridos sobre seus olhos. Algo intransponível... será?
Por
um momento viu ela chorando enquanto acenava sua despedida.
- É agora ou nunca.
Abrindo
os braços foi sinalizando de forma a ser visto pelos condutores passando as
raspelões e esbarrões de retrovisores uma a uma das seis pistas até o outro
lado percebendo que as pessoas paradas ali no farol faziam platéia para a cena
divididos entre os atônitos com as mãos na cabeça, os infartantes com a mão no
peito e os estressados que xingavam ao mesmo tempo que abanavam as mãos em
sinal de discórdia.
Cruzou
pela calçada e pode ver o ônibus a cerca de um quarteirão de distância. Um
longo quarteirão para ser bem sincero.
- E se o papel voou do ônibus? Não!
Acho que não e o ônibus parecia orvalhado. E não posso estar tão azarado assim.
Vai dar certo! Vou conseguir aquele papel e vou ainda hoje à sua procura.
Quando
chegou próximo do ônibus e verificando o número como sendo o 100974 seu olhar,
foi conduzido sorrateiramente ao para-brisa de um carro que vinha no sentido
contrário conseguindo reconhecer apenas o amarelo envelhecido do papel do
poema, seu companheiro triste dos últimos três dias. E uma segunda rajada de
vento derrubou folhas secas do teto daquele ônibus sobre sua cabeça fazendo
entender que estavam num cruzamento repleto de prédios que canalizavam o ar em
rajadas de vento capazes de alegrar uma donzela.
- Um táxi? Não é possível! E agora?
E
uma motocicleta freou bruscamente em sua frente a ponto de quase atropelá-lo.
- Aí? Você é louco? Vai para
calçada, maluco?!
Mas
o trajar do motoqueiro aliado ao capacete sentado no banco do passageiro era
tudo que precisava naquele momento... um mototaxista, afinal.
- Não sou louco, sou passageiro.
Siga aquele táxi, disse subindo
rapidamente na moto e colocando o capacete.
Tentava
não tirar o táxi de foco tendo que vez por outra apontar o novo rumo para o
motoqueiro. Sentindo que ia perder o carro dos seus sonhos de vista, sacou da
carteira uma nota de cinquenta reais e abanou-a na frente do motoqueiro apontando
para o táxi e para o relógio do outro braço. Como diria o poeta: “para um bom
entendedor um pingo é uma frase”.
A
motocicleta deu um galope retornando uma marcha que arrepiou as esperanças no
incauto Romeu. O trânsito estava rápido e o céu ameaçava uma chuva.
- Se cair um pingo ele liga o
limpador e lá se vai meu poema, pensava o
alcaide.
Aos
poucos a moto foi conseguindo vencer o trânsito e quase no final daquela
avenida, já perto de uma rotatória conseguia vislumbrar o carro que emparelhava
com um caminhão de lixo bastando passar por entre ambos que alcançaria o poema.
Mas
a tarefa que já se demonstrara pra lá de difícil, tomou outro rumo quando a
primeira gota tocou o para-brisa do táxi fazendo o limpador jogar ao vento o
amado poema que, sob um olhar deslumbrado do dono, passou a bailar de um para-brisa
direto para traseira do caminhão de lixo se dando ao luxo de ficar com uma das
pontas de fora como quem acena fazendo birra.
- Não acredito nisso!
Imediatamente,
sinalizou para o motoqueiro no sentido de aproximar-se do caminhão. Todos em
velocidade moderada, porém andando, davam à cena um risco inadequado mas
impensado pelo apaixonado ragazzo que, achado-se desesperado demais para
continuar simplesmente se joga da moto com as mãos esticadas na tentativa de
pegar a alça utilizada pelos catadores...e com sucesso apesar dos raspões do
sapato pelo asfalto, do breve escorregão e da salva batida de cabeça que o
capacete habilmente evitou, devolvendo- o ao motoqueiro que riu sumindo em
seguida.
Com
a fúria de um Titã e completamente incapaz de qualquer outra peripécia agarrou
o papel com a força necessária para alçar uma sacaria de sessenta quilos com
apenas dois dedos.
- Venha aqui.
Só
então percebeu que o caminhão estava parando, possivelmente achando tratar-se
de um assalto. Na verdade olhando bem os olhos do motorista que assistia pelo
retrovisor, certo seria um sequestro.
Sem
tempo para discussões, fez sinal de desculpas com a palma da mão aberta e foi
descendo antes da parada total. Não tinha tempo para discussões ou explicações.
Assim
que o caminhão acelerou pôde perceber que estava num bairro residencial. Virou
o papel ali mesmo na calçada e leu atentamente o endereço.
-
“Rua cem, 974, Suíça”.
- Não acredito que corri tanto por
nada. Ela foi embora para a Suíça. Agora sim é o fim. Jamais poderei revê-la
novamente. Acabou...fim!
Suíça
no Brasil. Tem gente que é besta mesmo. Porque colocar o nome de um bairro de Suíça?
Ah,
sei lá. Acho chique. Quem não pode mudar para a Suíça, muda para cá que dá na
mesma.
A
ridícula conversa só não foi mais torpe porque anunciava que a Suíça poderia
ser aquele bairro e não o país.
- Moço, o senhor sabe onde fica a
rua cem? Perguntou o intrépido
apaixonado.
- Acho que duas acima dessa na
paralela. Respondeu o retardado.
- Claro que não. É três contando
com essa. Retrucou o sonso.
E
o esperançoso rapaz sorrateiramente caminhou até o endereço deixando as
criaturas bestiais apreciando suas melancólicas existências.
- O que digo a ela?
- Será que o pai dela vai brigar
comigo? Não dou a mínima. Nem vou reagir. Se achar melhor me bater, desde que
me aceite, que assim seja. Não posso surrar o sogro, coitado.
- 972...974. É aqui!
- E agora? Bato na porta, grito,
jogo uma pedrinha. Pedra não porque com a sorte que estou hoje é bem provável
que quebre a janela e piore as coisas.
Tirou
o poema do bolso e deu uma ultima olhada. Quando levantou os olhos decidido a
tocar a campainha ela estava à sua frente. Linda...maravilhosamente linda. O
vento que tanto jogou seu poema de uma lado para outro agora voava seus cabelos
como que rindo da nossa pequenez ou, quem sabe, assentindo que a tarefa estava
completa.
- Eu tinha certeza que viria, disse ela.
- Nem que fosse agarrado num
caminhão de lixo!
- Como assim? Estranhou.
- Deixa para lá! Disse ele.
E
abraçando sua amada olhou de lado, novamente para o infinito ... e piscou com
um sorriso.
Ah!?
Sobre o que aconteceu depois? Bom! Ele não apanhou do sogro porque, à essa
altura, a sogra e a moça haviam dobrado a turrice do velho que passou a aceitá-lo
parcialmente como era esperado.
Melhor
assim!
Luciano, ao ler o seu conto, eu chorei muito, ri bastante e me desesperei com a procura de nossa jovem. Como eu torci para ele encontrá-la!
ResponderExcluirO desenrolar do texto, a forma como você conduziu foi simplesmente fantástico. Muitos poderão ler sem notar o papel que o "vento" tem nesta narrativa, mas aqueles que conseguirem sentir com certeza ficaram inebriados com a beleza das palavras, assim como estou agora. Parabéns, sem dúvida você é um grande escritor.